
Qualquer sistema de inteligência artificial (IA) depende do uso massivo de dados para seu treinamento, muitos dos quais incluem obras protegidas por direitos autorais – como textos, imagens, músicas e vídeos. Um dos principais desafios jurídicos atuais é determinar se os desenvolvedores de IA, ao realizarem a mineração desses dados, estariam infringindo direitos autorais de terceiros ao utilizar conteúdo sem autorização.
Esse é o tema de diversas ações ajuizadas contra empresas de tecnologia perante as cortes norte-americanas, e, recentemente, foram proferidas decisões de primeiro grau em dois desses casos: Bartz v. Anthropic e Kadrey v. Meta Platforms. Em ambos os casos, os juízes federais entenderam que o uso de obras autorais para o treinamento de sistemas de IA pode ser enquadrado como “fair use” – instituto próprio do direito norte-americano, que permite o uso limitado de material protegido por direitos autorais sem a necessidade de permissão do titular.
Em Bartz v. Anthropic, a corte comparou o treinamento da IA ao aprendizado humano, ressaltando que exigir pagamento por cada leitura ou lembrança seria impraticável. Também afastou o argumento de desbalanceamento de mercado, equiparando a IA a um escritor que se inspira no estilo de outro autor sem violar direitos. A exceção foi o uso de cópias piratas: nesse caso, o fair use não se aplica, e o uso não autorizado deve ser compensado.
Já em Kadrey v. Meta Platforms, a decisão adotou fundamentos distintos. A corte rejeitou analogias com o aprendizado humano, argumentando que a IA pode gerar infinitas obras quase instantaneamente, o que a torna incomparável a uma pessoa. Também não distinguiu entre obras obtidas legal ou ilegalmente, deixando essa controvérsia em aberto.
Ambas as decisões ainda são passíveis de recurso. Além disso, cada caso exige uma análise específica dos fatos envolvidos e das provas apresentadas, como por exemplo (i) quais foram as obras usadas pelo sistema de IA para treinamento, e (ii) como a empresa desenvolvedora de IA teve acesso a tais obras. A jurisprudência está, portanto, em evolução.
Ao contrário dos Estados Unidos, que seguem o sistema de common law e dependem fortemente de precedentes judiciais, o Brasil adota o sistema de civil law, onde a matéria é tratada principalmente por meio de legislação. Nesse sentido, a questão está sendo discutida no Projeto do Marco Regulatório da IA (PL 2.338/23), aprovado pelo Senado em dezembro de 2024 e atualmente em análise na Câmara. O texto atual vai no sentido oposto ao das decisões norte-americanas mencionadas, ao prever que a utilização de obras autorais para mineração de dados, sem autorização, só pode ser feita por “organizações e instituições científicas, de pesquisa e educacionais, museus, arquivos públicos e bibliotecas” (artigo 63). Nos demais casos, a mineração constituirá, via de regra, infração de direitos autorais. Essa lógica se alinha ao modelo europeu, positivado no “Artificial Intelligence Act”.
A discussão sobre IA e direitos autorais é global. Enquanto os EUA testam os limites do fair use pela via das decisões judiciais, o Brasil busca estabelecer um arcabouço legal mais formal e restritivo. Em ambos os países, o cenário ainda está em formação, o que exige atenção constante das empresas que desenvolvem ou utilizam IA em suas atividades.
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