COVID-19 | Cumprimento dos contratos

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26 de março 2020

Geral

Os contratos, como regra, devem proteger os negócios de influências externas ao longo do tempo, mas é durante crises que seus limites são de fato testados. A atual pandemia de Covid-19 não é uma exceção – o comércio global como um todo foi desafiado a se adaptar tanto à doença em si, quanto aos reflexos econômicos, políticos e comportamentais de sua prevenção.

Quando qualquer problema surge na operação de um contrato a primeira resposta deve ser sempre a mesma: negociação. Medidas tomadas durante os períodos de crise costumam gerar um impacto reputacional mais forte, demandando maior e melhor comunicação com parceiros e clientes também sujeitos a uma pressão fora do convencional.

Entretanto, nem mesmo a maior boa vontade garante que toda discussão termine com um acordo. Identificamos os quatro principais cenários em casos como o que estamos vivenciando na tentativa de expor as alternativas e os cuidados para maximizar a chance de sucesso de cada alternativa.

 Cenário 1

 Meu parceiro/cliente não vai conseguir cumprir o contrato

 Neste caso, duas alternativas são possíveis de acordo com o motivo do descumprimento.

Se você espera um descumprimento em razão de uma redução de patrimônio ou de recursos do parceiro/cliente, o Código Civil permite que você retenha a sua parte do contrato até que o parceiro/cliente (i) ou efetivamente cumpra o contrato, contrariando suas expectativas, (ii) ou preste alguma garantia em valor adequado (caução, fiança, alienação fiduciária, etc.).

A retenção aqui deve ser razoável. Por exemplo, se você espera que o parceiro deixe de fazer uma dentre várias entregas previstas no contrato, a retenção de valor deve ser proporcional a uma entrega, e não do valor total por todas as entregas; se você espera que o cliente atrase um único pagamento, a retenção também deve ser de quantia correspondente de produtos ou serviços que você entregaria.

Importante: isto não vale para contratos em que o cumprimento pelo parceiro/cliente dependa do seu cumprimento antes – algo comum em operações com margem baixas e/ou em que o alavancamento só seja possível por causa do prestígio ou confiança que um dos contratantes traz para a mesa. Sendo de conhecimento de todos os contratantes esta relação de dependência, a redução patrimonial deixa de reforçar a presunção de descumprimento.

Por outro lado, se você espera um descumprimento em razão de comportamento ou declarações da outra parte, a solução é pedir judicialmente o reconhecimento de inadimplemento antecipado, para então pedir o término do contrato e o pagamento de uma indenização por perdas e danos que você ou sua empresa tenham sofrido ou venham a sofrer.

Em ambos casos, um cuidado especial deve ser tomado com a prova. As evidências de redução do patrimônio devem ser claras e apontar diretamente para a inviabilidade do cumprimento; por sua vez, os comportamentos e declarações do parceiro/cliente devem mostrar com clareza a intenção de descumprir – é essencial a diferença entre uma notificação afirmando “não vou cumprir” e uma dizendo “solicito a suspensão/prorrogação do prazo”.

Além disso, é comum que contratos estabeleçam requisitos adicionais (prazos mínimos, notificações formais) para a retenção.

 Cenário 2

 Não vou conseguir cumprir o contrato

 Sem pânico – há aqui duas ferramentas sofisticadas do direito brasileiro que podem auxiliar eventuais empresas nessa situação.

A primeira é a revisão judicial, a segunda é a resolução por onerosidade excessiva. Ambas medidas podem ser usadas quando um evento externo impacta muito o valor ou custo de uma prestação contratual (pagamento, prestação de um serviço, entrega de um produto, etc).

Para revisão judicial, um evento imprevisível deve fazer com que o valor econômico da prestação na hora de realizá-la seja manifestamente desproporcional em relação ao preço que lhe foi atribuído na época de assinatura do contrato. Neste cenário, você pode pedir a um juiz ou árbitro que ajuste o preço do contrato para reequilibrá-lo ao valor de mercado.

Este evento imprevisível não é a mesma coisa que os chamados força maior e caso fortuito – estes são conceitos diferentes, relacionados ao quão inevitável um evento é. Aqui, basta que o evento não tivesse como ser previsto, mesmo se tomadas medidas razoáveis para isso. A queda do valor de um produto fora de sua época típica de consumo (como panetones em abril) não é imprevisível; ao contrário da escassez repentina de um produto por causa de estocagem em uma pandemia como a atual, que o torna muito mais valioso.

Não existe um critério objetivo para a desproporção manifesta – trata-se de um parâmetro que deve ser decidido caso a caso, com certa subjetividade.

Por sua vez, a resolução por onerosidade excessiva se foca na relação entre preço contratual e o custo de cumprir o contrato, e não entre preço contratual e valor de mercado. Quando o evento externo fizer o cumprimento do contrato ser excessivamente oneroso (em outras palavras, muito custoso para sua empresa), é possível pedir a um juiz ou árbitro o término do contrato sem multa nem indenizações – ou até mesmo uma revisão judicial para equilibrar de novo preço e custo.

A resolução por onerosidade excessiva demanda o cumprimento de mais condições, sendo necessários (i) um evento não só imprevisível, mas ainda extraordinário, e (ii) que o outro contratante tenha extrema vantagem se receber a prestação.

A extraordinariedade significa que não basta que o evento externo seja imprevisível – ele deve fugir do que seria normalmente esperado em um mercado, por pessoas e empresas do mesmo tipo que os contratantes, em face das informações de fato disponíveis antes de sua ocorrência. Uma elevação de preço de um insumo primariamente obtido de um país em constantes crises políticas e econômicas não é extraordinário; por outro lado, não há nada de rotineiro no aumento súbito do preço de insumos por sua maior demanda pela indústria médica para combater uma pandemia.

Quanto à extrema vantagem, inexiste uma métrica clara. Muitas vezes, o mero fato da prestação não ser ofertada por um preço tão baixo no resto do mercado já basta. Da mesma forma, inexiste uma porcentagem preço/custo a partir da qual a onerosidade seja excessiva – um prejuízo claramente passa no teste, mas abaixo disso cabe novamente a análise caso a caso e com espaço para subjetividade pelo juiz ou árbitro.

 Cenário 3

 Meu parceiro/cliente descumpriu o contrato

 Boa notícia, má notícia. A boa é que pouco muda do descumprimento em qualquer outra situação, havendo ou não crise e pandemia. A má é que uma das justificativas típicas para descumprimento pode ganhar mais força aqui – e livrar o parceiro/cliente das consequências.

A primeira alternativa é simples, comum, mas secretamente perigosa: tolerância. Todos os dias, vários desvios contratuais são intencionalmente ou não tolerados, sem prejuízos para ninguém: regras para notificação são desconsideradas em comunicações, juros e multas por pequenos atrasos são desconsiderados, assim por diante.

O problema em tolerar o descumprimento é fazê-lo mais de uma vez: a partir do momento em que uma prática reiterada se estabelece, o judiciário brasileiro tende a reconhecer uma mudança da regra contratual por causa da criação de uma legítima expectativa.

Ao contrário do que você possa imaginar, aquelas cláusulas em seu contrato dizendo que “todo ato de tolerância se interpretará como mera liberalidade” ou “qualquer modificação, renúncia ou novação deve se dar por escrito em instrumento separado” nem sempre protegem sua empresa disso. Estas cláusulas são importações típicas da common law, traduzidas mas nem sempre efetivamente aceitas pelo judiciário brasileiro.

Assim, é essencial que a tolerância seja quase sempre intencional e consciente. Sempre tenha registros escritos de que a tolerância foi pontual, de que quem descumpriu entendeu e aceitou que a tolerância foi pontual e, se possível, intercale a tolerância com uma ou outra penalidade.

A segunda hipótese já se apresentou anteriormente: reter a sua prestação (pagamento, entrega, serviço) até que resolvam o descumprimento. A regra em lei que justifica a retenção é marginalmente diferente neste caso, mas os requisitos são os mesmos: proporcionalidade e correlação entre o descumprimento e a prestação retida.

Em terceiro lugar, surge a possibilidade de pedir o término do contrato. Quase todo contrato impõe regras, condições e limita os tipos e valores de descumprimento que permitem o término, sendo crucial o conhecimento das circunstâncias específicas caso essa medida seja escolhida.

Há ainda dois obstáculos consideráveis para o término por descumprimento. O primeiro está na proporção do contrato que já foi entregue pela parte que descumpriu – caso seja alta, o judiciário pode entender que houve adimplemento substancial ou fundamental do contrato e impedir seu término. Não há parâmetro objetivo, mas cuidado sempre que o descumprimento se der depois que metade do contrato já tiver sido cumprida.

A segunda é mais uma mentalidade do que qualquer coisa: o chamado princípio da conservação dos contratos é uma ideia autoexplicativa que costuma nortear decisões judiciais (e arbitrais) brasileiras. Assim, quase sempre que houver uma alternativa ao término, o juiz ou árbitro vão adotá-la.

Por fim, a medida que pode ser adotada em conjunto tanto com o término quanto com a retenção: a aplicação de multa e/ou pedido de indenização por perdas e danos. Lembre-se de sempre manter documentação organizada e capaz de demonstrar os prejuízos que cada atraso de entrega e cada pagamento perdido causam a sua empresa. A organização destes documentos pode significar custos e tempo – mas é uma economia considerável em face das perícias que se arrastam muitas vezes por meses em ações judiciais ou arbitrais.

A principal defesa que o parceiro/cliente pode apresentar no atual cenário é simples: descumpri em razão da crise gerada pela pandemia do Covid-19. Em termos jurídicos, esta defesa quase sempre vai se apresentar como inadimplemento por força maior ou por caso fortuito.

Como antecipado, o elemento principal aqui é a inevitabilidade – mas tão importante quanto ela é a existência de uma conexão causal direta entre evento imprevisível e extraordinário de um lado, descumprimento do outro.

Sim, a pandemia é inevitável. No mesmo sentido, um decreto governamental que limite a atividade de empresas em determinado mercado (seja total ou parcialmente) em decorrência da pandemia também é um evento inevitável e que pode impossibilitar empresas daquele mercado de cumprirem suas obrigações contratuais.

É importante que se analise com frieza se de fato eventos que ocorreram no contexto da pandemia impedem ou não que o parceiro/cliente cumpra o contrato. O sistema judicial brasileiro é consideravelmente sensível a questões de cunho social – provavelmente a pandemia influenciará uma série de decisões de formas inesperadas.

Cenário 4

 Descumpri o contrato

 Suponhamos o pior dos cenários: sua empresa de fato descumpriu o contrato.

A primeira alegação é de inadimplemento por força maior ou caso fortuito. As mesmas regras já apresentadas se aplicam. Entretanto, resta uma questão mesmo que elas tenham se superado: sua empresa tomou as medidas razoáveis, adequadas e suficientes para evitar o descumprimento?

De fato, talvez seu fornecedor tenha sido afetado por um decreto governamental e não produza mais (ao menos por enquanto) um insumo insubstituível para produção, ou simplesmente esteja incapacitado de prestar seus serviços. Você procurou outros fornecedores na região? Procurou outros mais distantes, mas que ainda caibam no orçamento? Avisou o seu cliente assim que soube?

Se o direito comercial brasileiro tem uma espinha dorsal, ela é por bem ou por mal o princípio da boa-fé objetiva: a diretriz de que todos devem tomar todas as medidas adequadas, razoáveis e suficientes para garantir o cumprimento de seus contratos. Aqui a boa fé no sentido moral de não sabotar seu próprio contrato.

Assim, a inevitabilidade só é levada em consideração quando ela existir apesar da parte que descumpriu ter tomado todas as medidas adequadas (ou seja, potencialmente úteis), razoáveis (ou seja, que fazem sentido econômico) e suficientes (ou seja, sem parar pela metade) para tentar evitar o evento ou a impossibilidade. Sem isso, não há força maior: há omissão.

A segunda medida é o pior cenário dentro do pior cenário: sua empresa descumpriu e não houve força maior. Eis aqui a utilidade de tomar as tais medidas adequadas, razoáveis e suficientes: é possível no direito brasileiro pedir que penalidades sejam reduzidas proporcionalmente à culpa que alguém de fato teve.

 

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